Foi quando o bloco Seu Vizinho passou na porta de sua casa que Daniel, então com 8 anos, descobriu sua paixão pela música. Os batuques que ressoavam por entre as ruas da Vila Marçola, no Aglomerado da Serra, região Centro-Sul da capital, mexeram com o menino de tal forma que ele não teve dúvidas: queria aprender a tocar. Hoje, aos 13, Daniel 'Tubarão', como é conhecido na comunidade, já faz parte da bateria. Ao seu lado, 18 jovens participantes de oficinas de percussão do Fica Vivo! do Centro de Prevenção à Criminalidade (CPC) Serra vão tocar, muitos pela primeira vez, na bateria do Seu Vizinho, bloco que, em seu sexto ano, já arrasta milhares de foliões durante a segunda-feira do Carnaval de Belo Horizonte.

Ao longo de todo o último ano, os jovens vêm aprendendo, durante dois encontros por semana, figuras rítmicas, compassos, sinais e viradas. Em outubro, já de olho no Carnaval, os ensaios se intensificaram, e o Seu Vizinho começou a reunir, todos os domingos, seis diferentes grupos para treinar juntos para o desfile, marcado para o próximo dia 24. "A gente fica o ano inteiro construindo isso, ensinando os ritmos, os sinais, e quando juntamos todas as turmas e montamos uma bateria de um bloco de Carnaval, os jovens conseguem ver que aquele ritmo que aprenderam, aquela virada e aquela conversão estão encaixados em uma música, e tudo faz mais sentido", conta o oficineiro Paulo Vitor Ribeiro, do Fica Vivo! Serra. "O Carnaval de BH é político, e construir isso com a juventude é fundamental. Temos jovens de 13, 15 anos regendo, cantando. Meu sonho é que, no futuro, eles também virem oficineiros, e que a gente possa multiplicar tudo isso".

Os ensaios conjuntos do Seu Vizinho são um verdadeiro intercâmbio, com interação entre diferentes faixas etárias e classes sociais. "A galera do morro vê muita coisa na TV, os blocos cada vez maiores, mas a maioria não tem gente preta, favelada, sem dinheiro. E aí, com as oficinas, eles passam a pertencer a essa realidade, em um bloco local. Estar dentro disso, viver tudo isso é incrível", diz Paulo Vitor. "E é bacana não só a questão do acesso à música, mas a possibilidade de eles circularem pela comunidade e de estarem dentro do contexto do Carnaval da cidade como um todo".

O sentimento é compartilhado pelos jovens, que já dominam o manejo de surdos, caixas, repiques, tamborins e chocalhos. Em 2019, Gabriel Henrique da Silva, de 14 anos, foi no bloco como folião e, agora, depois de um ano de oficinas do Fica Vivo!, vai realizar o sonho de sair na bateria. "Quando toco me sinto feliz", conta. "O Seu Vizinho agora é nossa família", completa Ariane Pâmela Amaral, de 15 anos, que também vai tocar pela primeira vez. Daniel Tubarão, que se descobriu apaixonado pela música, diz que a emoção de criar os ritmos de dentro de uma bateria de bloco é grande. "Dá calo no dedo, arranca pele, mas é muito bom. Uma vez até quebrei as baquetas de bater tão forte. A gente empolga com a música".

Política de Prevenção

O Fica Vivo! faz parte da Política de Prevenção à Criminalidade desenvolvida pela Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp). Segundo a diretora de Proteção da Juventude da Subsecretaria de Prevenção à Criminalidade (Supec), Michelle Gangana Duarte, dentre os elementos fundamentais das oficinas realizadas em territórios de alta vulnerabilidade social estão a oferta do acesso à cidade e também a ampliação de oportunidades aos jovens. "A juventude periférica é associada quase sempre à criminalidade e ao tráfico de drogas. Saber que, muito além da criminalidade, eles são artistas, músicos que se apropriam das festas da cidade e atores ativos nesse processo significa uma materialização da proposta pedagógica das oficinas. Estamos dizendo para eles que é possível, sim, se apropriar e ser parte da cidade", afirma.

Na Região Metropolitana de Belo Horizonte, o Fica Vivo! oferece oito oficinas de percussão espalhadas em diferentes comunidades. Os jovens participantes vão desfilar em pelo menos cinco blocos e escolas de samba durante esse Carnaval. Também no CPC Serra, quatro jovens participantes de uma dessas oficinas, ministrada pelo oficineiro Everton Roberto Rodrigues Daniel, o Tico, que dá aulas há dez anos na região, vão desfilar pelo Baile do Serrão, que sairá pela primeira vez neste ano. O desfile é no dia 23, domingo, também a partir de 14h.

"A percussão tem essa peculiaridade do conjunto. Cada um deles tem o lugar de uma peça muito importante no todo", avalia Michelle. A diretora explica que a estratégia dos cortejos com músicas, que percorrem as ruas de territórios vizinhos, é muito usada para ajudar a romper linhas imaginárias que existem entre diferentes vilas e também para chamar a atenção de áreas mais violentas para o fenômeno da criminalidade de uma forma diferente: "A música coloca vida em espaços marcados muitas vezes pelas mortes".

Cortejos

Com o slogan "Todo mundo junto e aglomerado", o Seu Vizinho vai desfilar na segunda-feira de Carnaval, a partir das 14h, com concentração na avenida Mem de Sá, 2020, no encontro dos bairros Serra e Santa Efigênia. O tema neste ano, "Diversidades" - de gênero, etnia e religião - , estará nos figurinos, adereços e decoração do trio elétrico. Uma das organizadoras do bloco, Bárbara Ribeiro, de 28 anos, conta que nos cortejos de pré-Carnaval, durante percursos por diferentes vilas da Serra, o grupo vai convidando os moradores para o grande encontro do dia 24. "É uma forma de irmos criando raiz. O bloco é da Serra, mas é para toda a vizinhança, independentemente de onde cada um vem", diz.

A poucos dias do desfile, a sede do bloco se transformou em um grande atelier. Mulheres, homens e crianças se juntaram para construir juntos fantasias e adereços. Cortando tecidos e pintando espadas de São Jorge que vão decorar o trio, Bárbara lembra de quando o Carnaval de Belo Horizonte ressurgiu, há 10 anos, puxado por uma juventude branca, de classe média. "O acesso ao instrumento ainda é muito difícil. Uma caixa (instrumento) custa quase 30% de um salário mínimo. Mas as pessoas da favela também gostam de festa. Temos que fortalecer a inserção no Carnaval independentemente de classe social", defende ela. "A ideia é ocupar as ruas e dar visibilidade para a favela, mostrando as coisas boas que têm aqui, muito além do estereótipo da violência que sempre associam ao morro".

O oficineiro Paulo Vitor, que já fazia parte do bloco Seu Vizinho quando conheceu e entrou para o Fica Vivo!, explica que, graças ao programa, tem conseguido acessar mais jovens e trazê-los para o universo da música. "Os cortejos de pré-Carnaval possibilitaram aos jovens irem a lugares que nunca haviam estado antes, por conta de uma cultura que existe de que gente de uma vila não pode ir em outra vila. Não precisa ser assim. Com a música, temos circulado, e isso gera um senso de mais segurança entre todos", afirma.

O resultado? "O pessoal abraça, mesmo", diz Bárbara, orgulhosa. Em 2019, cerca de 10 mil pessoas acompanharam o Seu Vizinho. Para 2020, a expectativa é ainda maior. Somente a bateria, que reúne cerca de 90 pessoas, ganhou um reforço especial neste ano: toda a alegria dos jovens músicos do Fica Vivo!.

Texto e fotos: Luiza Muzzi

Vídeo: Felipe Gurgel

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